DESVENDANDO A SIMBOLOGIA OCULTA
DE LISBOA III
DE LISBOA III
LISBOA DO QUINTO IMPÉRIO
(REPORTAGEM DE MANUELA GONZAGA IN REVISTA 3 DE "O INDEPENDENTE", 8 a 14.10.1999)
Quando a terra tremeu, o mar e o fogo correram sobre as ruas antigas, a devorar casas e palácios, igrejas e albergues, lojas, teatros, fortalezas, campanários e pórticos, até o chão ficar ensopado de cinzas e lama, e corpos aos milhares, para que uma cidade nova crescesse sobre estes escombros, clara e apolínea, racional e ampla.
Mas a Lisboa pombalina, pós-terramoto, traçada a régua, esquadro e compasso, é, também, herdeira de António Vieira, de Bandarra e de Camões, assumindo-se capital do Quinto Império que Pessoa escavava, depois, nos arcanos da Astrologia e da Gnose. O Marquês impôs as regras. Mas os códigos são muito mais antigos, e esse património abrange todo outro Saber.
Página a página, na pedra das estátuas, no traçado e na orientação do eixo que define ruas e avenidas, ainda hoje é possível encontrar, na repetição do símbolo, na linguagem cifrada de números e formas, a ossatura do sistema, a ordem latente onde assenta o Mito.
Viajámos pela Lisboa do Quinto Império na companhia de um historiador que escreve sobre estes temas. É um homem pálido, de fato e gravata, cabelo comprido e olhos encovadíssimos, autor e apaixonado do mistério que circunda a "cidade mais bonita do mundo". E é ele, Vitor Manuel Adrião, quem estabelece o percurso:
"Vamos ao Rossio e aos Restauradores, aí faremos a leitura ícone-simbólica, no que me for possível, de algumas estátuas e do obelisco. Vamos ao extinto restaurante "Abadia", nas caves do Palácio Foz. Vamos espreitar as entradas para os subterrâneos de Lisboa, segredo de Estado nas mãos do Exército. E às Ruas do Ouro, da Prata e Augusta. Ao Terreiro do Paço, concebido de acordo com a numerologia das lâminas do Tarot. Vamos ler e tentar decifrar um pouco da iconologia patente no pórtico da igreja da Conceição-a-Velha e visitar a de S. Roque, no Bairro Alto. Vamos tentar ver a lápide do alquimista, num túmulo no Convento do Carmo."
Estava um calor magnífico. Passámos por entre turistas e remámos contra a maré de gente apressada. E parámos junto à Gare Central do Rossio, neogótica, de sabor manuelino. Entre as duas portas, em forma de ferradura, ali está ele, o Desejado, em estátua de pedra de dimensões naturais, com a mão segurando a espada, com a sinistra pousada no terceiro castelo do escudo e a ponta da lâmina apontando o quinto:
"Indica a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade que há-de governar o Quinto "Castelo" ou Império, o dos Lusitanos. Este monarca controverso e delirante, no final de contas, é apenas a representação do Filho, a figura ou expressão régia do Encoberto, daquele que há-de vir, um símbolo de Humanidade Perfeita de uma Nova Era. Quando o Padre António Vieira evocava o Rei-Encoberto, o Rei-Desejado, não se referia tanto a D. Sebastião concretamente mas ao Arquétipo deste Reino. Ainda relacionado a este escultório, correm à "boca pequena" as vozes de certas tradições pretendendo que a espada aponta para um ponto específico, a alguns quilómetros abaixo do chão, onde existirá uma estrada subterrânea que liga a Sintra."
Vitor Adrião discorre sobre símbolos e temas, apontando pormenores: as vides, que remetem para Dioniso, o deus do vinho, da exaltação, forma apaixonada do conhecimento, que tem a sua representação em Shiva no panteão oriental. Deuses da Sabedoria Oculta. Omnipresente, o cordão de marear, ex-líbris do Manuelino, consagração deste povo de navegadores que tinham por timoneiro o Infante Henrique de Sagres, Grão-Mestre da Ordem do Templo, dita de Cristo, cujas cruzes estavam inscritas nas velas das naus que buscaram e deram novos mundos ao mundo. É a outra História, a das lendas e mitos, depurada do sangue e da cobiça, do aqui-e-agora, mas não menos real por menos evidente.
Estátuas e obeliscos, cavalos. Baixos-relevos que contam histórias. Praças de dimensões justas. Ruas que formam um traçado geométrico. No dia glorioso, o sol ainda queima. À direita, ao alto, as ruínas magníficas do Carmo. Em frente, a Rua Augusta, que desemboca no Cais das Colunas. Nuvens cerradas de pombos pousam ou levantam voo das praças.
"A estátua de D. Pedro no Rossio equivale ao `mundus´, o ponto axial, centro para onde convergem todas as direcções da cidade e - porque não? - do País, já que Lisboa dele é capital. Aqui temos o monarca imperial de Portugal e do Brasil, apadrinhado pelos Guardiões das quatro direcções do Mundo, assinaladas nos quatro naipes do Tarot: paus, espadas, ouros e copas. No Cristianismo, são conhecidos como Rafael, Mikael, Ariel e Gabriel", explica Vitor Adrião.
E rodeando a estátua, vai indicando, naipe a naipe, Guardião por Guardião. Taças, ou copas, apontando para a Rua de Santo Antão, o "Anacoreta do Deserto", "a qual inclina 17 graus para a direita".
Ouros aponta para a Gare Central do Rossio, "o Caminho Alquímico, o Ouro Vivo, a Pedra Filosofal, onde está a estátua do Encoberto, aquele que cavalga o cavalo branco, o Avatara, o Cristo de Aquarius, o Senhor do Quinto Império".
Paus, ou báculo, aponta em direcção ao "Carmo, o lugar donde se propagou oficialmente o culto matriarcal à Mãe Divina, o convento onde morreu e repousou o féretro de Frei Nuno de Santa Maria, antes o Condestável D. Nuno Álvares Pereira, que às armas juntou a devoção e assim se tornou Santo (os seus restos mortais repousam hoje na igreja a si consagrada, em Campo de Ourique). Convento, ainda, que a tradição mais velada afirma habitada ao tempo por adeptos herméticos senhores das mutações alquímicas, e aí ainda se pode ver, num dos lados do túmulo de D. Fernando, a ilustração escultória dum alquimista operando no seu laboratório debaixo da terra, sob o convento, a que se desce por uma escadaria longa."
Finalmente, espadas. "A Espada da Lei e da Virtude, a que premeia e salva, a que protege ou castiga, que aponta em direcção à Sé Patriarcal de Lisboa, a quinta Catedral Graalística do Ocidente, por onde depois do ano 985 da nossa Era a Taça do Santo Graal passou e ficou até finais do século XV", diz ele.
E insiste: "Para onde olha D. Pedro, o Imperador do Brasil? Em direcção ao Cais das Colunas, onde, diz a Tradição, cantada, glosada e prosada por Fernando Pessoa, para não falar de Sampaio Bruno, António Sérgio e outros, haverá de desembarcar, alegoricamente falando, o Enco- berto. O Salvador das Nações. Para essa concretização todos terão de dar o seu contributo mental e moral da melhor maneira que souberem fazer, em prol da edificação de uma Sociedade Humana mais justa e perfeita. Nisto bem se enquadra a Profecia de Sintra: `Quem nasce em Portugal é por missão ou castigo´. Seja por missão."
CONVENTO DO CARMO
Portugal, país sob o biorritmo do valor 17, o Arcano da "Estrela dos Magos", astrologicamente regido por Peixes e Júpiter (enquanto Lisboa a é por Balança e Vénus), que por sua vez tem na água o seu símbolo supremo. É essa que encontramos no cruzamento da Rua de S. Nicolau com a Rua Augusta, na esquina configurando o Nascimento, assinalado em Nicolau (o bem conhecido Pai Natal), para a Luz Augusta, indicadora do Androginismo Perfeito ou da Perfeição Humana.
Na quadrícula da Baixa, sete ruas longitudinais cruzam-se com sete ruas transversais, intersectadas por três praças: assim se encontra, de novo, 17, o número da "Estrela dos Magos". E os nomes das ruas remetem para a terminologia alquímica - Rua do Ouro, Rua da Prata - que tem o seu desfecho na arquitectura da Praça dos Arcos.
Sob o Arco do Triunfo por onde se desemboca no Terreiro do Paço, a Cruz de Santo André, com a Rosácea ao centro. Uma porta gradeada, sob um dos arcos, dá para a entrada dos subterrâneos. E aqui estamos, turistas na nossa própria cidade, deambulando neste espaço magnífico... Alguém toca flauta. Alguém ri. Muita gente fala, a toada que persiste é uma mistura de línguas.
"A Praça da grande Obra, Malkuth, o `Reino´, sintetiza toda a tradição mítico-sagrada de Lisboa. Os arcos frontais: os 22 Arcanos Maiores, e os restantes são os 56 Arcanos Menores. É o `Livro de Thot´, o Tarot egípcio. A passagem pelos claustros da arcaria chama-se `Os Passos Per- didos´. Perdidos para o profano, achados para o Iniciado que chega ao fim adquirindo o Conhecimento", explica o nosso guia.
No centro do Terreiro do Paço, a estátua deste cavaleiro D. José I, obra de Machado de Castro, vestido à romana, com a capa curta da Ordem de Cristo, não será antes - ou também - São Jorge de Portugal, o vencedor de dragões, esmagador de serpentes, de Tarascas em que salva donzelas virgens e inocentes, aqui as `flores da maternidade´ de uma Nova Era? As deusas atlantes, fundadoras da cidade - primeiro Ofiússa, mais tarde Ulissibona e Lissabona. Símbolos, símbolos. O Leão. O quinto signo do Zodíaco, o sinal do Quinto Império. O esquadro e o compasso, insígnias da Grande Obra, assinatura maçónica. Os tesouros escondidos, para descobrir.
A mó ligada a São Vicente, Orago da cidade, que tem dois corvos no seu brasão. Aves proféticas, uma sabe do Passado, a outra sabe do Futuro. Lisboa velha, velha, ligada por subterrâneos que comunicam, o Castelo com a Sé, a Sé com o Convento do Carmo. Vias ocultas, atravessando toda esta quadrícula, cujas portas, discretas, entaipadas, divisamos. Ou as lajes, de argolas, como nas histórias dos tesouros.
Lisboa dos 12 bairros - o Universo por inteiro, com as 12 moradas do Zodíaco - e das sete colinas (em Astrologia os sete planetas que regem os signos), reconstruída por um húngaro, Carlos Mardel, o homem escolhido por Pombal, que chefiou toda a equipa de arquitectos que ergueu a cidade dos escombros do terramoto de 1755.
De modo que os pormenores das figuras da Praça do Comércio têm a ver com "a `Casa dos 24´e com a Maçonaria Operativa, essa a Maçonaria Primitiva ou Arte Real. O 22.º Arcano está ao centro, com Apolo e Minerva, coroados pelo Triunfo, este o de todas as imagens que preenchem o Arco: Ulisses, o Tejo e o Douro, Viriato, Nun´Álvares, Vasco da Gama e o Marquês de Pombal."
Ainda há o pórtico da igreja da Conceição-a-Velha. Ainda falta a Abadia. É preciso ir a São Roque. E há que não esquecer os corvos. E os subterrâneos, aonde já não é possível ir, sob esta praça assente sobre estacas, por onde a maré reflui. Os comerciantes da Praça da Figueira queixam-se muitas vezes da água salgada que lhes inunda as caves nas marés vivas.
Mas que Quinto Império é esse, afinal? É o Reino de Bandarra, de Pessoa, de Vieira. O do Terceiro Milénio. O Império do Espírito Santo, entrevisto por Joaquim de Flora, no limiar da heresia, acolhido por Diniz e Isabel, dita "a Rainha Santa", que instituiu as festas em que se coroa o Imperador-Menino, vai para oito séculos, revivido em Alenquer, em Tomar, em Sintra, nos Açores, no Brasil.
Porquê "Quinto", e para mais "Império"? Histórias tão antigas. O sonho de um rei, Nabucodonosor, interpretado por um profeta, Daniel, registado num livro do Antigo Testamento. Uma estátua. Cabeça de ouro, peito e braços de prata, ancas de bronze, as pernas metade de ferro, metade de barro, e logo destruídas por uma pedra que se transformou numa montanha. A cada um dos metais corresponde um Império. A pedra que os destrói é o último, o Quinto, a irromper no Extremo Ocidente, o Reinado que, na inversão dos metais, corresponde à Idade do Ouro, à vinda do Desejado, a Parúsia universal, para instituir o Reino do Pai e do Filho incarnados no Espírito Santo.
E é este sonho, não delirante mas mágico, que tem polarizado há séculos pensadores, poetas, nautas, filósofos, sapateiros profetas, num ideal que une seres tão díspares como um quase santo, António Vieira, e um déspota iluminado, Sebastião José de Carvalho e Melo.
Diante do portal de uma igreja esquecida, Vitor Adrião conta: "Era aqui a sinagoga de Lisboa, depois consagrada Conceição-a-Velha, a Virgem Negra do Restelo trazida em procissão so- lene, há séculos reinando D. Manuel I, da Ermida do Infante Henrique de Sagres. Os antigos sabiam que Lisboa está sob a égide Vénus, a Boa Mãe, a Senhora das Águas, a Lusina, a Venusina, a Varina."
E ali está ela, Vénus de espada e balança, com roupas de varina lisboeta, na coluna central de Santa Maria no pórtico frontal, e o único, deste templo quase abandonado, rodeada de símbolos alquímicos, grifos e águias, anjos e livros abertos e fechados, o menino, a lebre e o cão.
Esperam-nos na Abadia. Sob as caves do Palácio Foz jaz um tesouro maravilhoso. Limpo de entulho, recuperado passo a passo, eis o antigo restaurante maçónico, onde se repetem os símbo- los de todo este percurso, numa arquitectura interior dividida em três partes: o Claustro, o Refeitório e o Coro.
Ali estão 24 bustos, entre os quais uma senhora, ali estão esquadros, compassos, insígnias. As colunas. O Adepto, com o barrete frígio, carregando a Sabedoria Divina. Os elefantes, as andorinhas e as pombas saindo em cruzeiro dum pombal em esquina. "O Pombal do Cruzeiro Mágico de Portugal". Os cachos de uvas e a raposa que as olha cobiçosa sem lhes puder chegar, arrancando a desculpa mal resignada: "Estão verdes, não prestam." E a fonte de corais - fingidos, evidentemente - que liga pela escadaria do poço anexo aos subterrâneos de Lisboa. E a laje que dava para o túnel que desembocaria muitos metros acima, numa outra entrada num edifício junto à Trindade. Essa entrada está agora gradeada e entaipada, selada também com o leão de bronze. Mas aqui está a Dragona, iconográfica da Rainha dos Mundos Subterrâneos, grávida, "simbolizando o parto de uma Nova Era".
E salta à vista um outro pormenor. É tudo falso neste extinto restaurante, falso porque a madeira parece pedra, a pedra parece madeira, e as únicas coisas em material pétreo indiscutível são as colunas. Verde e vermelha:
"Significa matar a ilusão das aparências que quase sempre enganam. Significa desvelar Ísis, e tomar posse da outra e verdadeira leitura, a real. Trata-se do conhecimento iniciático que não vem nos livros nem em quaisquer outros meios públicos de informação, mas que se deixa perpetuar com muito fingimento, isto é, sabendo ocultar."
E entramos outra vez no domínio do oculto: Ordens Secretas. Vitor Adrião: "Há uma, a Ordem do Santo Graal, à qual todas devem Obediência."
Faz lembrar de novo as especulações à volta de Fernando Pessoa: seria ele templário? Maçom? E se sim, de qual das Obediências?
A viagem está quase no fim. Encerramo-la na igreja de São Roque. Onde toda uma outra história ainda fica por contar.
Remata Vitor Adrião: "Por detrás de minha pessoa e da Obra Teúrgica de que faço parte, existe a Ordem do Santo Graal."
A partir daqui o seu discurso introduz umas palavras que não são de uso corrente, estranhas e de sonoridade bizarra, mas quando lhe pedimos para as repetir ele diz: "Não vale a pena."
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