A IMITAÇÃO DO PARAÍSO BÍBLICO
(REPORTAGEM DE FERNANDO DACOSTA IN MAGAZINE DO "PÚBLICO", N. 157 7/3/1993)
Os que, há mais de um século, decidiram construir um jardim zoológico em Lisboa, não quiseram construir apenas um jardim zoológico, isto é, uma reserva de animais exóticos ou bravios; ambicionaram mais, edificar um espaço que sintetizasse o Paraíso da Bíblia e o Éden pagão. Erguido na Quinta das Laranjeiras em 1905, depois de ter estado em Palhavã, tornou-se desde então um dos mais belos e estranhos zoos de que há referência.
Pessoas excepcionais na época, os seus promotores - caso do rei D. Fernando II, do escritor Camilo Castelo Branco, dos médicos Van der Laan e Sousa Martins (alvo, hoje, de invulgar culto religioso), do barão Hessler, de Carvalho Monteiro e dos condes Farrobo e Burnay - atribuíram-lhe um significado simbólico marcante.
A sua matriz teria, assim, sido inspirada no Jardim das Delícias, nos Paraísos bíblico, hindu e caldeu, onde os quatro reinos da Natureza, mineral, vegetal, animal e humano, se religam, se harmonizam.
O mineral está representado pelas águas e granitos da zona, o vegetal pela variedade da flora, o animal pelas espécies zoológicas conseguidas, e o humano pelos visitantes, sobretudo crianças, que o procuram em número crescente.
Segundo alguns estudiosos, como o dr. Vitor Manuel Adrião, que o investigou durante anos e sobre ele preparou o livro "Regaleira de Sintra", em lançamento, a singularidade que apresenta deve-se ao facto de "todos os que estiveram na sua génese terem sido iniciados e membros de Ordens Secretas, Maçonaria (conde de Farrobo), Rosa Cruz (D. Fernando II), Ala do Templo (António Carvalho Monteiro)".
Para eles, um jardim zoológico devia ser um lugar de reencontro com o mistério, com a espiritualidade. Os arquitectos chamados imprimir-lhe-ão esses signos e sinais, a que o Romantismo, emergente na altura, dará, em termos públicos, bom acolhimento.
Investigações recentes permitiram apreender os significados contidos nas estátuas, nas colunas, nas pontes, nas fontes, dispostas de acordo com as fases das viagens do Conhecimento.
A chave para a sua decifração encontra-se no Roseiral, espaço delimitado por sebes e pavilhões, onde se entra por uma lindíssima e minúscula ponte de pedra, símbolo da passagem para o Superior, para o Perfeito. Obra de extremo bom gosto, semelhante aos tabuleiros suspensos do Nilo, está delimitada por quatro colunas, ostentando cada uma um artífice egípcio, guardião das quatro direcções envolventes.
O Roseiral parece o jardim de um templo aberto, com as suas fontes, recantos, labirintos, vértices, esferas, grinaldas graníticas, com as suas esfinges andróginas (rostos de homem e seios de mulher), os seus dragões assírios, os seus gansos, os seus delfins, as suas figuras mitológicas. Lugar da rosa, constitui a síntese final de todo o zoo.
Este encontrava-se sobranceiro a uma zona de sete rios que desembocavam no rio de São Domingos, do qual saíam quatro riachos que percorriam o vale das Laranjeiras. "Tal como o Paraíso terrestre, que era banhado por um rio dividido (palavras de Manuel Adrião) em quatro braços: Pison, Gion, Tigre e Eufrates."
Quatro séculos atrás, D. João de Castro surpreendia o país e a Europa ao falar no projecto de um jardim zoológico onde se concentrassem as espantosas diversidades de animais e plantas que os portugueses, nas suas viagens, haviam descoberto pelo mundo. O clima ameno e o património de conhecimentos que detínhamos sobre as raças dos bichos e as maneiras de com eles lidar, tornava-o à partida viável.
A herdade da Penha Verde, que possuía em Sintra, podia, afirmava, ser um bom local para o projecto. O antigo vice-rei das Índias não foi, porém, levado muito a sério. Mas o fascínio pela fauna das paragens longínquas tomar-nos-ia, desde então, para sempre.
Os grandes do reino passaram a ter exemplares dela nas suas quintas, seres de maravilha e espanto, a impressionarem fortemente os estrangeiros que as visitavam. Plantas e animais raros venciam oceanos e reproduziam-se em jardins aristocráticos, climatizados para o efeito. Metrópole de impérios africanos, sul-americanos, asiáticos, Portugal fazia-se referência decisiva.
Dominando a cultura, as artes, a ciência, a economia, notáveis ligados ao rei D. Fernando II marcam a vida criativa de então. Lugares especiais são-lhes objecto (Sintra com o Palácio da Pena e Sete Rios com a Quinta das Laranjeiras) de realizações surpreendentes.
Pela sua localização, pelo seu microclima, pelas suas águas ("águas boas" as designaram no tempo das pestes), pela sua arquitectura, pelos seus edifícios, pelos seus bosques, a herdade de Sete Rios apresentava-se desde logo como o espaço ideal para um jardim zoológico.
Comprada aos franciscanos pelo conde de Farrobo, que lhe construiu um palácio e um teatro, o Tália, tornou-se um centro cultural de invulgar prestígio. Com capacidade para 560 especta- dores, o teatro (actualmente entregue ao Ministério da Juventude) foi o primeiro edifício a ser, entre nós, iluminado a gás, Nele representaram-se óperas, peças e bailados famosos, com a presença frequente da corte.
Dificuldades surgidas levaram, no entanto, a que o primeiro zoo fosse instalado em Palhavã, nos terrenos onde se encontra hoje a Fundação Gulbenkian. Aí esteve desde 1883 até 1904, altura em que o Governo alugou o Parque das Laranjeiras (em 1940 expropriou-o) e para lá o transferiu, dando-lhe a envolvência ambicionada.
As obras de adaptação, como as realizadas nos finais dos anos 20 por Raul Lino, não lhe feriram o equilíbrio nem lhe desvirtuaram a estrutura. A sua excepcionalidade tem sido, com efeito, preservada sobre as carências, os revezes sofridos. O maior dá-se quando, a seguir ao 25 de Abril, se instala a ideia de que ele é uma obra da burguesia, parasitária e contra-revolucionária. Chega a ser proposta a sua destruição e o abate dos animais e das árvores.
"Hoje atravessa uma fase de expansão. Os bichos estão felizes", especifica Manuel Adrião. "Os tratadores são excepcionalmente dedicados. Júlio Isidro deu-lhe, através da televisão, um apoio decisivo. Empresas privadas ajudam-no, o número de visitantes aumenta. É fundamental que todos tenhamos consciência do seu valor."
Do lado de lá dos muros fica o caos de uma Lisboa desespiritualizada, dessacralizada, com ruídos, trânsitos, edifícios (um deles, o da antiga escola da PIDE), poluições, a cercá-lo.
A cortina do tempo que separa os dois mundos faz-se frágil, frágil como o olhar dos bichos cativos, a transparência das águas, a reverberação das plantas, os risos das crianças, como o sonho dos que criaram esta obra singularíssima da nossa utopia, do nosso engenho, do nosso domínio dos outros - os animais, no caso presente.
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